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Herberto Helder
António Fournier

 
 

A ILHA DE TODOS OS MITOS

 


A carta chegou no final do Verão de 2000. Eu tinha uma cópia da chave do portão da Facoltà di Lingue (coisa hoje impensável), em plena Via Santa Maria, a dois passos da Torre de Pisa. Fui lá num domingo de manhã levantar a posta restante das férias e, na penumbra de uma faculdade vazia, lá estava ela à minha espera. Recordo o alvoroço ao reconhecer o endereço do remetente. Li-a em voz alta, eufórico, acompanhando aqueles traços pretos bem vincados no papel quadriculado. Dizia: “Como pode ver, sou completamente artesanal: folha de caderno escolar, esferográfica. Perdoe-me você se a caligrafia lhe causar embaraços de leitura. Quanto ao seu projecto de reunião de autores nascidos na Madeira, claro que autorizo a inclusão de um texto meu. Gostaria de saber se a edição que possui de Photomaton & Vox é a 3.ª, a de 1995. É que introduzi inúmeras alterações relativamente às duas edições anteriores, e preferiria, claro, que elas fossem tidas em conta.”

Tinha escrito a Herberto Helder a pedir autorização para traduzir para italiano o visionário “(uma ilha em sketches)”, o melhor texto que alguma vez se escreveu sobre o Porto Santo, aquele Porto Santo parado no tempo que Samuel Beckett detestara quando lá passou o natal de 1958, mas que Helder, alguns anos antes, soubera perscrutar como ninguém, lembrando que “o talento do absurdo é criar o excesso”, como faziam aqueles homens famintos que se alimentam exclusivamente de imagens, para enganar a fome. Esse texto viria a integrar uma antologia publicada em 2005 em Itália, juntamente com outros textos de autores madeirenses, nomeadamente os outros dois poetas “exilados”, José Tolentino Mendonça e José Agostinho Baptista, ao qual pertence, de resto, o verso escolhido para título do livro: “nostalgia dos dias atlânticos”.[1]

Logo a seguir, de forma algo inesperada, Helder confessava: “Sabe? – a Madeira para mim é uma memória emocional: a Madeira real, penso, já pouco tem a ver com essa memória transformadora. Saí de lá jovenzito, e não voltei. Nem família lá tenho – só um primo (que de vez em quando me telefona insistindo para que eu lá vá, mas telefona e telefonará em vão: a minha Madeira é a memória da infância, da adolescência; não suportaria um confronto com a verdade objectiva).”

Sabia que não era verdade. Também nós, os amantes de poesia, e na ilha não somos poucos, consumíamos tudo o que dizia respeito a Helder, investigávamos, perguntávamos. Não por voyeurismo literário, não porque não soubéssemos que os poetas não têm biografia, a sua obra é a sua biografia, mas simplesmente pelo desejo de compreender melhor aquilo que alguém, antes de nós, tinha descoberto através da poesia. A Madeira não é só o folclore político que quase quarenta anos de jardinismo deixaram como triste legado no imaginário colectivo nacional. Reconhecíamo-nos em Helder, identificávamo-nos numa mitologia primordial, descobríamos como “todo o poema / é um tumulto / que pode abalar / a ordem do universo”, como diz José Tolentino Mendonça no conhecido poema “A infância de Herberto Helder”. Porque a infância e a adolescência na ilha são algo demasiado belo e intenso para poder ser esquecido. São uma espécie de tatuagem que se vai ramificando na memória.

Sabíamos também que qualquer mito é o resultado de uma fractura, de uma separação dolorosa da terra dos deuses. Uma trincheira intransponível antepõe-se inesperadamente e impede para sempre o regresso a uma unidade da qual ficamos irremediavelmente órfãos e prisioneiros. Esse é o começo da poesia, ou da escrita. Um luto. Não se trata porém de nostalgia lírica de coisas passadiças, como diria Knopfli, mas de uma fonte inesgotável de imagens fundadoras. Por isso, seguindo o rasto das casas que Helder habitara no Funchal [2], demorávamo-nos a olhar de fora a janela que dá para o mar, na Rua Aspirante Mota Freitas, imaginando aquela mulher “sentada junto à janela” que se volta para trás e sorri “do fundo de uma terrível sabedoria” [3]. Lá dentro, no fundo do corredor a olhar para ela, estaria Helder aos oito anos.

Sabíamos que essa era a casa do desastre da morte da mãe. Lêramos quase clandestinamente Apresentação do rosto para tentar decifrar que revelações proibidas Helder fizera para depois obstinar-se tanto em obscurecer esse livro. Confrontávamo-lo com os primeiros poemas publicados aos vinte e um anos na antologia Arquipélago (“Mãe:/ todos nós sabemos como nasce uma planta ou um animal”) [4]. Investigávamos na Rua das Pretas à procura da cave onde se teria reunido com Carlos Camacho e Jorge de Freitas para redigir o Manifesto aos habitantes do Arquipélago da Madeira publicado com os Poemas Bestiais, logo apreendidos pela censura. Regozijávamos quando algum de nós conseguia arranjar um exemplar do precioso número único de Búzio [5] e comungávamos daquele objectivo a que outros jovens madeirenses, antes de nós, se tinham proposto: Búzio “é uma defesa contra o silêncio, uma espécie de revolta frente ao geografismo imperioso e fatal que, como uma anulação, impõe constante e unicamente um céu azul por cima e um pitoresco turístico em volta.” [6]

Em Sleepwalkers, Arthur Koestler conta que uma vez, em criança, perguntara ao pai quem era Deus. O pai respondera-lhe que Deus eram as figuras de bailarinas pintadas no tecto do seu quarto de dormir. A partir daquele instante, à noite olhava para elas, projectando os seus medos e anseios. Deus estava ali, ao alcance do olhar, e aquela criança sentia-se protegida. Estava mais perto do céu. O próprio Helder sabia-o e nós sabíamos através dele: graças à sua poesia, compreendíamos o nosso lugar no mundo. Podíamos ir ao local do crime. Estava tudo onde Helder deixara. Bastava seguir as pistas. Como, por exemplo, a casa com o céu estrelado, de Aníbal Faria, o primeiro “alienista” do Funchal.

É a ele que Helder se refere na entrevista publicada no jornal Público, quando diz: “Conheci um homem, um psiquiatra descontente [...], vivia numa ilha, este, descontente, adorava falar de estrelas, constelações, sabia tudo, mas era, digamos, estelarmente irredutível: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o tecto do quarto de dormir por uma abóbada com um sistema electrónico de corpos celestes, deslocados, todos, relativamente à estrutura natural, autónomos entre si. Ali era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus: um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava era um céu dele, era ele.” [7]

Foi também a ele que Helder começou por dedicar o conto “O quarto”, depois integrado em Os passos em volta, no qual o protagonista constrói uma casa na costa norte, a parte mais selvagem e inóspita da ilha, com a encosta vertical por trás e o horizonte à frente, uma casa com tecto mas sem chão, que é de terra batida, onde ele se irá deitar pela última vez para aí morrer, recuperando o cordão umbilical com a ilha. Terra e céu equivalem-se, o forte enraizamento e o sentimento de pertença ao lugar tornam-se modelo sensível do mundo.

Por isso, sabia que não era verdade. Sabia que Helder tinha voltado uma vez à ilha. Conhecia a versão abreviada, quase anedótica, da história: o poeta desembarca no aeroporto, apanha um táxi para o Funchal, e lá chegado, não reconhecendo a sua cidade natal, pede ao taxista que o leve de volta ao aeroporto. Na realidade, sabia o nome do hotel na Rua dos Netos, onde Helder ficara hospedado. Não é difícil fantasiar sobre o que terá feito nesses dias, não é preciso ser poeta para o saber: é o que faz qualquer madeirense quando regressa e se deixa possuir pelo espírito das ilhas.

Porém, no seu caso, não me custa perceber que, após quase 30 anos de ausência, a emoção do regresso se tivesse transformado em abalo sísmico. Falando com quem o viu então, soubera que ele parecia perdido na cidade. E fora um abalo sísmico não por motivos políticos ou de qualquer outra natureza; não porque, como diz Pavese, nunca se deve voltar ao lugar onde se foi feliz (Helder terá sido feliz no Funchal?). Fora-o muito provavelmente por aquilo que Luciana Stegagno Picchio me disse uma vez em Pisa. Caminhava a seu lado na Piazza dei Cavalieri, e ela perguntara-me se ainda era ali a livraria onde o poeta brasileiro Murilo Mendes costumava comprar os seus livros. Disse-lhe que não e ela, suspirando, exclamara: “Nunca voltamos ao mesmo lugar!” Respondi que era verdade, que envelhecemos. Ela corrigiu-me: “Não, não é isso, são as cidades que rejuvenescem.”

Curiosamente, em Janeiro de 2015, dois meses antes de o poeta falecer, Gastão Cruz tinha-me mostrado a carta que Helder lhe escrevera para Londres, do quarto desse hotel. Tinha a data de 3 de Maio de 1984: “Cheguei ontem ao começo da noite e, logo depois de deixar a mala no hotel, fui dar uma volta pela cidade. A primeira impressão foi de estranheza, um grande desapego. Como se eu nunca tivesse tido nada a ver com este lugar e estas coisas. E uma um pouco atemorizante sensação de irrealidade. Dormi pessimamente [...]. Acordei angustiado. [...] Vou fazer-lhe uma confidência: apetece-me voltar já para Lisboa. Que estou eu a procurar?”

Que viera Helder procurar ao Funchal? O poeta responde a esta pergunta para ele crucial no assombroso texto em prosa que abre o volume Servidões, já anteriormente publicado na revista A phala, e num suplemento do Diário de Notícias do Funchal [8]. Nele volta à infância para falar de uma faca cravada no tronco de uma bananeira e dos estranhos arabescos que a seiva deixava de noite, formando um bestiário fantástico que se ia tentar decifrar de manhã. Mas agora, acrescentara-lhe uma apostila, uma espécie de conclusão. Dir-se-ia uma forma de resolver as coisas, de ajustar contas com o lugar:

Encontrava-me agora na ilha onde nascera; muitos anos de ausência seguida, e estava ali. Para morrer? O meu centro, o âmago, era esta terra que afinal eu não reconhecia como esperava, com alvoroço, com uma emoção porventura amarga, difícil, mas não desta maneira recuada, como se eu não fosse vulnerável aos prestígios da minha tradição. [...] Eu não reconhecia o mundo, aquele. Poderia então morrer, insensível, ali? Só morremos de nós mesmos, e se existe uma figura topográfica, geográfica, talvez seja escolhida ou imposta pela inspiração que dirige profundamente a nossa vida. Esta ilha não se integrava na minha ordem espiritual e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos fundamentais, os primeiros, naquelas imagens, nos acontecimentos por assim dizer nascidos nesses lugares, nascidos deles, ali concedera como reitoria irreversível e inocente aquilo que, com alguma veracidade, alguma retórica, alguma fé, se chamaria destino.[9]

Ele, o poeta obscuro, arredio a entrevistas, que se furtava a encontros e pedia aos amigos para despistarem qualquer informação a seu respeito, revelara um facto estritamente pessoal, que pertencia ao domínio da biografia e não ao da poesia. Porquê? Antes de mais, porque foi isso que Helder sempre fez. Há um irredutível autobiografismo em tudo o que Helder escreveu. Ao publicar o texto quase trinta anos depois de ter estado na Madeira, estava de algum modo a querer despedir-se da ilha de todos os mitos. A “realidade objectiva” de hoje era para ele uma “irrealidade atemorizante”, ao passo que a sua poesia, resultante da sua “memória transformadora”, coincidia com a totalidade da sua vida e do seu ser: “uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical”.[10]

Seria de facto assim? Decerto era assim que queria que ficasse registado: como um círculo que se fecha, um destino que se cumpre.[11] Mas falta contar o mais importante. Conheci pessoalmente Helder numa tarde de Maio de 2003, no Solar das Galegas, ao cimo das escadinhas do Duque, em Lisboa. Este é o testemunho da única vez que estive com ele, e revelo-o porque me parece útil para perceber melhor a sua relação com a Madeira, que talvez nunca tenha sido devidamente tida em conta. Posso reproduzir quase palavra a palavra o que foi dito, porque tenho o hábito de tomar nota dos encontros memoráveis.

Mas há um antecedente que importa aqui revelar, e que aparentemente nada tem a ver com Helder: na Madeira, houve entre 1893 e 1939, um insólito comboio a cremalheira, típico de países da Europa central atravessados pela grande cordilheira alpina como a Suíça, a Áustria e a Itália. Por incrível que pareça, o Funchal também teve um. Conduzia os passageiros, na maioria turistas, até o Monte, espécie de Sintra madeirense, onde as famílias funchalenses veraneavam. Na altura, eu andava empenhado numa campanha de salvaguarda e sensibilização para o património físico do chamado caminho de ferro do Monte, nomeadamente a primeira das três estações, ameaçada pela especulação imobiliária.

Sabia que Helder frequentara aquela zona, que vivera numa casa perto da estação do Pombal quando a firma do pai falira, e também sabia que no caminho do Monte, por onde desciam as famosos carrinhos de cestos, tinha sido exposta durante muitos anos a célebre Lapinha do Caseiro, meta de peregrinação pelo natal, com figuras talhadas a canivete e pintadas à mão por um artesão popular talentoso, Francisco Ferreira, seu bisavô, sobre o qual, de resto, a Assírio & Alvim viria a publicar um livro há poucos anos. Tive oportunidade de ver pessoalmente algumas dessas peças em casa do tal primo de Helder, que me dissera que veria com bons olhos a cedência do espólio a uma entidade pública que o soubesse valorizar e expor condignamente ao público.

Ora, isso conciliava-se perfeitamente com o projecto de transformar a velha estação do Pombal numa casa da escrita que preservasse o espírito do lugar. José Barrias, artista plástico português a residir em Milão, e Paolo Mestriner, arquitecto de Brescia, aderiram ao projecto. Barrias fizera uma instalação na Casa Pessoa em Lisboa e outra na galeria Porta 33, no Funchal. Em ambos os casos, aplicara o conceito de escrita pintada, e no caso da galeria o texto que reproduzira na fachada era justamente um poema de Helder. Para a estação do Pombal, que albergaria a Lapinha do Caseiro, eu tinha seleccionado uma passagem de “Trezentos e sessenta graus”, o último conto de Os passos em volta, que fala, por sinal, de regressos: “esse equívoco sentimento de plenitude, essa paragem e retrocesso brusco do tempo, a estupenda pureza reconquistada, como encontrar-se no comboio de regresso. Ele pensa em como esses mesmos caminhos foram percorridos alguns anos antes, em sentido contrário, e agora parece-lhe reconhecer as árvores depois da estação.” Fora esse o pretexto do nosso encontro em Lisboa.

No Funchal, passara muito tempo a recolher testemunhos e conhecera algumas pessoas do tempo do comboio. E entre elas, uma em especial chamara a minha atenção. Leandro Jardim não só se revelaria um óptimo contador de histórias, como confessaria, para minha surpresa, ter conhecido Helder. A sua casa ficava paredes meias com a casa onde a família deste costumava passar férias. Eram adolescentes quando se conheceram, e tinham-se perdido de vista quando Helder abandonara definitivamente o Funchal, em 1956. Mas Leandro Jardim conservava uma memória muito viva desse convívio. A certa altura, citara de cor passagens de “O sentimento dum ocidental” que nunca lera, mas que se recordava por o ter ouvido declamar a Helder! De facto, nas temporadas que passara no Monte, o “menino”, com os seus 16-17 anos, “andava sempre com um livro debaixo do braço” e costumava declamar poesia para os rapazinhos, mais novos, da zona. Adorava declamar Pessoa e Cesário e “despertou em todos nós o gosto pela poesia”.

E agora ali estava eu diante de Helder em pessoa! Também eu o tinha ouvido declamar, mas a sua própria poesia (“Era uma casa – como direi? – absoluta. / Eu jogo, eu juro. / Era uma casinfância...”) no CD “Os poetas” que Rodrigo Leão, Gabriel Gomes e Manuel Hermínio Monteiro tinham editado em 1997. Notara um ligeiro sotaque, mas agora tinha a confirmação: Helder falava em madeirense. Era na nossa língua afectiva que conversávamos! E não parecia estar a falar com um dos maiores poetas portugueses, mas com um meu conterrâneo, sobre um lugar que ambos conhecíamos, embora em tempos diferentes: “Quando a minha mãe morreu, fui aluno interno do Colégio Lisbonense. No último andar, havia uma camarata. Lembro-me de manhã, quando me levantava. A vista era esplêndida. Tinha uma panorâmica a 360°, via o Funchal todo. Lembro-me de olhar para o caminho de ferro e não ver nenhum comboio. Não tenho memória de ver um comboio, na altura decerto já não havia...”

Devo dizer que Helder não se furtou a nenhuma das minhas curiosidades. Em Os passos em volta, eu tinha notado algo que parecia ter passado despercebido à crítica: o livro tinha vinte e três contos, tantos quanto as letras do alfabeto português. E ele confirmou-o: Os passos em volta eram uma espécie de enciclopédia pessoal, de A a Z, e tinham de facto um carácter circular não só pelo próprio título mas também por esse tal conto “Trezentos e sessenta graus”, que fechava o conjunto. A propósito de “Teorema”, de longe a melhor interpretação literária da lenda de Pedro e Inês de Castro, Helder lembrava-se da barbearia Vidigal, em Santarém, quando lá vivera: “Eu não tinha barba na altura, não gostava de me ver de barba. Então ia muitas vezes ao barbeiro. Era louro, tinha um bigode monárquico. A praça, o marquês de Sá da Bandeira, a janela manuelina, está tudo lá.”

Falou também da revista Búzio, outra das minhas curiosidades: “Criámos uma revista literária. Só saiu um número. Era assim nos anos cinquenta. Quotizávamo-nos e pagávamos o número. Contactei dois poetas madeirenses: o Cabral do Nascimento, que nunca respondeu, e o Edmundo de Bettencourt, que mandou logo três poemas.” A propósito de Bettencourt, Helder revelou que fora ele, Pedro da Silveira e (salvo erro) Alfredo Margarido, a insistir para que o poeta de Poemas surdos reunisse e publicasse a sua obra, o que, como é sabido, viria a acontecer em 1963, com um prefácio do próprio Helder. Referiu-se ainda a Leopardi (que lera já tarde, mas cuja obra conhecia razoavelmente), Hölderlin (leitura juvenil que tinha servido para a “formação do espírito”), Teixeira de Pascoaes (“manteve-se sempre um escritor do século XIX”) e Vitorino Nemésio (“li Mau tempo no canal umas nove vezes”). Confessou ainda que “escrevia com uma facilidade indecente”, e que “as coisas têm que partir sempre da paixão.”

Levei-lhe o suplemento do Tribuna da Madeira que eu tinha organizado sobre o comboio do Monte, e ele estranhou muito ver numa foto recente, automóveis no Largo da Fonte (“na minha altura não havia”). Contou que ficava o mês de Outubro no Monte, lembrava-se da pequena estação e dos homens a jogar à bisca. Subia de autocarro, “uma camioneta ronceira, lenta”, e depois descia a pé pela linha férrea: “havia uns degrauzinhos e nós tínhamos uma técnica para os saltar. Era como um jogo, os degraus eram abaulados, não tinham ângulos”. Descia-os na companhia de João Borges (para que se saiba, foi ele que fez de Moby Dick em algumas cenas do famoso filme de John Huston, rodado nos mares da Madeira e dos Açores: era um excelente nadador e vestiu um fato de baleia branca mandado vir expressamente de Londres), do irmão Henrique e ainda “de outro miúdo de que já não me lembro o nome...” E eu: “É ele!” E mostrei-lhe a foto de Leandro Jardim no jornal. Helder olhou longamente para o rosto daquele homem de setenta anos, com quem convivera brevemente cinquenta anos antes. Ficou em silêncio. Pareceu não reconhecer nele as feições do adolescente que conhecera, do adolescente que ele próprio tinha sido. Por fim, desistiu e comentou que na Madeira se dizia: “Não olhes para trás, senão ficas transformado em estátua.”

No exemplar de Os passos em volta que levei para ele autografar, escreveu: “Para o António Fournier, com o melhor apoio aos seus esforços de ressurreição de algumas das mais fundas imagens da minha infância, afectuosa e gratamente, Herberto Helder.” O poeta partiu definitivamente, mas lá na ilha de todos os mitos, a faca continua cravada no tronco de bananeira.

 

 

NOTAS

1. AA.VV, Nostalgia dei giorni atlantici, Scritturapura, Asti, 2005.

2. José de Sainz-Trueva, “As casas de Herberto Helder. Passos para uma fotobiografia” in Margem 2, n.° 3, Câmara Municipal do Funchal, Maio de 1996, p. 45.

3. Herberto Helder, Apresentação do rosto, Ulisseia, Lisboa, 1968, p. 42.

4. AA.VV, Arquipélago, Editorial Eco do Funchal, Funchal, 1952, p. 55.

5. AA.VV, Búzio, n.° 1, Edição de António Aragão, Porto, 1956, p. 17.

6. idem, p. 2.

7. Herberto Helder, “As turvações da inocência” in Público, de 4 de Dezembro de 1990, p. 31.

8. Luís Calisto e Artur Campos, “Herberto ainda mora aqui” in Diário de Notícias do Funchal, de 19 de Fevereiro de 1995, pp. 8-11.

9. Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013, pp. 16-17.

10. idem, p. 18.

11. Gastão Cruz mostrou-me recentemente outra carta datada de 28/5/84 (publicada neste número de Relâmpago), em que Helder voltava a referir-se à viagem à Madeira. Regressado a Lisboa, Helder fazia assim o balanço do recente périplo madeirense: “Não lhe falarei muito extensamente da viagem à Madeira, pois nem sequer sei muito bem o que representou para mim. Acho que qualquer coisa se transformou. Não estive lá todo o tempo que tencionava: apressei o regresso. Depois, acho eu, terei de falar ou escrever acerca disto. De qualquer modo, nunca mais voltarei à ilha.” Esta é uma importante achega para compreender a sua última viagem à Madeira, pois é notório que nutria grandes expectativas para o seu regresso ao Funchal, onde pensava demorar-se mais tempo. A sua decepção (que o fez retornar mais cedo a Lisboa) encontra confirmação na já citada carta que me escreveu: “a minha Madeira é a memória da infância, da adolescência; não suportaria um confronto com a verdade objectiva.”
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