modo
de ler: acender um texto de amor nos ouvidos
1. Luís Miguel Nava
organizou este volume de ensaios, em 1994, ordenando-o tal como agora
se apresenta aos leitores. Contrariedades várias, entre as quais
a extinção da editora onde haviam sido entregues os originais,
fizeram com que o livro acabasse por não ser publicado em vida
do autor. Outros contratempos (como a dificuldade em encontrar os textos)
adiaram de tal forma a sua concretização que só
hoje, dez anos depois, temos acesso a um dos mais importantes livros
sobre poesia que entre nós se escreveram nos últimos tempos.
Alguma luz que se pretenda fazer incidir sobre o livro limitar-se-á
a sublinhar certos traços relevantes, acompanhando de perto o
pensamento do autor.
Antes de mais, a ordenação que lhe foi atribuída.
Se, por um lado, se impõe a ideia da reunião de peças
soltas, por outro não deixa de actuar em sentido forte o princípio
estruturador. O fragmentarismo decorrente do facto de estarmos perante
uma recolha de ensaios não obstrui o fio ordenador que atravessa
o conjunto, resultando daí em grande medida o seu impacto. Esse
mesmo ideal foi perseguido por Luís Miguel Nava na sua obra poética.
Lembre-se o modo como, muito cedo, organizou e arrumou a sua produção
no conjunto Poemas, em 1987, cujo princípio organizador
explicita no final, em texto aposto. Recorde-se ainda como esse propósito
se evidencia na concepção de todos os livros e se torna
especialmente nítido nas divisões de Vulcão,
a última obra que publicou.
Nos Ensaios reunidos, não deixa de se observar uma expressiva
intencionalidade na divisão ternária. Na primeira parte
— que não é propriamente uma introdução
—, a partir de três exemplos de criadores estrangeiros,
abre-se a reflexão sobre o poético. Na parte central,
como se de um desenvolvimento se tratasse, há uma concentração
essencial no corpus da poesia portuguesa moderna e contemporânea.
A terceira parte congloba um só texto sobre o pintor Francis
Bacon, nome que repercute como familiar para os conhecedores da poesia
de Luís Miguel Nava e imediatamente deixa adivinhar as razões
do destaque.
É na segunda parte do livro que mais claramente avulta o princípio
ordenador sustentado pelos pilares da história literária.
Aliás, nesse sentido, importa referir a presença assinalável
de alguns enquadramentos panorâmicos que contribuem, como fios
encadeadores, para a configuração do fluxo. Surpreende
a naturalidade do efeito concatenador, mesmo quando se impõe
a centralidade concedida a alguns nomes e obras. A extensão e
natureza diversas dos textos (provenientes de revistas, de jornais,
de introduções a antologias, de respostas a inquéritos
ou depoimentos, de recensões ou prefácios) é subsumida
numa perspectiva unificadora, de tal forma que são anuladas as
diferenças de registo. Coabitam sem choque os ensaios mais ambiciosos,
em que se observa um grande investimento hermenêutico (como é
o caso dos textos sobre Eugénio de Andrade), com pequenas recensões
(como acontece com um texto sobre Políbio Gomes dos Santos).
É o fio da cronologia que mais contribui para a visão
de perspectiva e mais visivelmente opera a integração
do descontínuo. Indissociável da visão panorâmica
surge o esquisso de uma particularíssima linhagem. Repare-se
que, a este respeito, também Luís Miguel Nava se apropria
de uma das mais célebres citações de Borges, por
muitos retomada. É justamente no primeiro parágrafo do
primeiro ensaio (“Notas a um poema de Rimbaud”) que o poeta
e crítico a destaca: “cada escritor crea a sus
precursores”. Pela visão do índice e pela leitura
dos ensaios somos conduzidos à linhagem pessoal do poeta;
depressa se percebe como da reflexão sobre a modernidade e da
interrogação sobre a contemporaneidade ele chega aos seus
mais próximos eleitos. As interrogações e as reflexões
do crítico são indubitavelmente comandadas pelo desejo
do poeta de perceber e de mostrar a sua diferença, a sua especificidade
face aos contemporâneos, definidas pela inserção
num sistema de oposições e semelhanças. A proximidade
temporal relativamente aos autores estudados mais não faz do
que sublinhar o seu próprio (possível, desejado) lugar
no quadro da história literária portuguesa. Tudo isto
se torna nítido, por exemplo, na forma como é relevada
a referência fundadora aos poetas da década de 60 e no
modo como insistentemente se questionam tópicos apontados como
definidores da poética dos anos 70.
Contudo, mais do que as razões e as motivações
pessoais, o que fica da leitura, a ideia forte que se impõe é
de que estamos diante de um contributo essencial para uma história
da poesia portuguesa. Tanto nos panoramas como em pontuais quadros
de tendência contextualizadora, podemos observar que existe uma
leitura profundamente crítica, não se limitando o autor
à acumulação de dados, de referências ou
de meras sínteses neutrais. No interior dos textos destacam-se
admiráveis insights, como este em que se reconhece o
impacto de uma dívida aos precursores da modernidade poética
em Portugal (Cesário e Pessanha): “Conciliar a «rudeza»
do primeiro com a «delicadeza» do segundo, proceder em síntese
a uma assimilação para que Pessoa vira o caminho facilitado
pelo expediente dos heterónimos, tal tem, a meu ver, sido a principal
aposta da poesia portuguesa dos últimos cinquenta anos”.
2. Num ensaio dedicado
a um livro de poemas que passou bastante despercebido quando surgiu,
e que provocou em Luís Miguel Nava um fascínio ilimitado,
diz o ensaísta: “ao escrever sobre este livro, estou de
algum modo a subscrevê-lo”. O livro em questão é
Área Branca, de Fiama Hasse Pais Brandão. Imediatamente
a seguir projecta estas afirmações no plano da sua actividade
crítica. O que está implícito na declaração
tem implicações vastíssimas, pois para o crítico,
que é antes de tudo poeta, o acto de subscrever o livro pressupõe
uma apropriação, um desejo que é, no mais íntimo,
o desejo de ser o autor do livro. Por isso o que pretende da crítica
é simplesmente “iluminar o texto com a luz que dele próprio
ela consiga extrair e concentrar”.
Osvaldo Silvestre chamou a atenção para o facto de progressivamente
se observar um esbatimento da matriz universitária na actividade
do estudioso que nos forneceu uma importante apresentação
da poesia de Rodrigues Lobo. Passaria a ser dominante a crítica
que se implicava directamente com a actividade prática do autor
(cf. Relâmpago nº 1). Se a dimensão
erudita se afasta em definitivo do horizonte do crítico poeta,
há um pressuposto teórico profundamente devedor da chamada
estética da recepção que surge como uma recorrência
impressionante ao longo destes ensaios. O texto só esplende verdadeiramente
no quadro da esfera comunicacional, e o leitor assume o papel de entidade
imprescindível. Aliás, no primeiro ensaio do volume, essa
questão é claramente exposta. E é fundamental o
facto de este texto ser programaticamente colocado a abrir. Aí
se lê que “literatura é um efeito de leitura”.
Ao longo dos ensaios o leitor será continuadamente chamado à
boca de cena.
O ensaísta procura entrar na lógica da concepção,
da elaboração das poéticas estudadas, “consciente
de que a melhor crítica a qualquer escrita é não
aquela que a toma por objecto, mas a que aceita entrar no jogo da sua
significação”. Ao longo de todo o livro observa-se
um equilíbrio notável entre a precisão analítica
e os enquadramentos amplificadores. Nesse equilíbrio joga-se
a emoção estética, uma verdade que é o profundo
entendimento do poético.
Ponto essencial deste ensaísmo é a forma como na aproximação
dos poemas dos outros se socorre da minudente atenção
textualista, com o brilhantismo da análise retórico-estilística
(recordem-se, por exemplo, na leitura de Moradas de António
Franco Alexandre, a atenção concedida ao significante
e a reflexão operada em torno das figuras). Mesmo na linha da
leitura estatística (“levantamentos de áreas semânticas
e termos mais recorrentes”) algumas vezes levada a cabo, também
à tarefa de decomposição e recomposição
se sobrepõe o rasgo do hermeneuta apaixonado. E quando se insiste
na análise microscópica, acaba por estar sempre presente
a atenção ao pendor estrutural, mesmo quando se avança
pelo interior da própria incompreensão que o texto propõe:
“Daí que seja tão difícil, senão mesmo
impossível, agarrar, fixar, esta escrita, ou dela dar uma visão
«continental», totalizante. Podemos, todavia, erguer algumas
pontes” (“Acme a arte de ser”). A propósito
do grande relevo concedido à ideia de reunião, ao modo
globalizador de entrever a literatura, recorde-se o ensaio sobre a poesia
de Fernando Assis Pacheco, quando afirma que a leitura desta obra permite
“redefinir de uma maneira mais nítida os contornos do que
foi a poesia portuguesa nas últimas três décadas”.
Poder-se-ia ficar com a ideia de que a perspectiva que nos faz ler os
ensaios aqui reunidos, com o apoio da focagem histórico-literária,
nos levaria ao campo da exclusiva leitura sobre poesia portuguesa contemporânea;
pode observar-se que sobreleva afinal o efeito de suspensão que
nos permitiria ajustar outra intitulação possível
para o volume: ensaios sobre poesia. Simplesmente. O livro deixa o âmbito
da contingência para se colocar no plano da reflexão abrangente.
Depressa se chega à conclusão de que os pontos de vista
sobre a arte em geral são pontos de vista que desembocam na referência
à poesia, se cruzam com a poesia ou vão ter à poesia.
Quer se fale de um romance de Gide ou de um texto poético concreto.
No âmbito da resenha, ao ler Alexande Bissexto, de Armando
Silva Carvalho, afirma programaticamente: “É evidente que,
sem saber o que se entende, ou é possível entender, por
poesia, não se pode ir muito longe. Prosseguir esse objectivo
através dos meandros deste livro, tal é o propósito
insensato que norteia estas palavras.”
3. A poesia de
Luís Miguel Nava ocupa um lugar diferenciador no panorama da
poesia portuguesa dos finais do século XX, e essa diferença
decorre, em grande medida, da extraordinária força das
imagens que “explodem” (como se lê no primeiro poema
de Películas) no quadro de uma sintaxe sabiamente encontrada.
Na sua produção ensaística, imagens e analogias
ocorrem com igual força para dar a ler uma obra, para interpretar
um verso ou para estabelecer conexões entre poemas. No primeiro
texto do seu livro inaugural, acima referido, encontro versos que emblematicamente
me conduzem na apresentação destes Ensaios Reunidos:
“o modo de ler, de acender um texto de amor nos ouvidos”.
A convocação da metáfora da luz retirada da obra
do próprio poeta será um dos modos mais justos de acedermos
ao volume que reúne os ensaios de Luís Miguel Nava. A
metáfora é obsessivamente convocada no interior do próprio
discurso crítico, e o seu alcance hermenêutico associa,
naturalmente, neste espaço, a visão ao conhecimento: uma
verdade, uma paixão que vem de um olhar de dentro.
Volto ao primeiro livro de poesia para tomar agora de empréstimo
uma imagem que traduz admiravelmente o projecto de escrita de Luís
Miguel e que dialoga com versos citados no livro de ensaios. No poema
“Atrás da página”, lê-se: “há
poços nos espelhos / onde a nudez / se precipita, a luz mordendo
a água”. Na associação entre o poço
e a luz encontra-se uma chave para o entendimento do mundo do escritor.
No ensaio sobre Luiza Neto Jorge, que constitui um poderoso exercício
de busca, a dado momento, cita os seguintes versos de “Eu, Artífice”:
“corrijo o mais da matéria, / ergo a minha arte do poço
/ onde flutua”; mais à frente, ao sintetizar esta poética,
diz que nela é como se as palavras “jorrando em desordem
do fundo do poço” se organizassem “segundo afinidades
existentes entre si”, pois que o sentido, como que “sempre
à beira da vertigem”, seria “comandado pelo ritmo”.
Noutra leitura, sobre o volume colectivo Uma Exposição,
são destacados dois versos de Joaquim Manuel Magalhães
que apresentam uma imagem similar: “A luz interior acende-se /
no poço da voz”. Esse pequeno livro recenseado por Luís
Miguel Nava, que reúne criações de dois poetas
e de um fotógrafo a partir de quadros de Edward Hopper, activa
em si mesmo um estimulante trânsito desencadeado pelo diálogo
que supõe inter-relações de vária ordem.
A irradiação da luz é o que resplandece nos poemas.
Afirma Luís Miguel Nava que “é contra uma progressiva
extenuação da luz que eles se levantam”.
O poço reaparecerá insistentemente na poesia de Luís
Miguel investido de forte carga simbólica, não como lugar
de fechamento, mas como símbolo da profundidade que se pode abrir
em inesperadas direcções. Convocar o poço e a luz
é um modo de dizer a vertigem como conhecimento. A emergência
das imagens e a insistência com que surgem referidas em toda a
sua poesia (tanto no corpo de poemas como nos seus títulos –
vd. “A Imagem” em Vulcão) recorda
quão determinante é o pendor visualista que dela toma
conta, e que acaba por ter idêntico impacto na escrita ensaística.
Esse visualismo complexifica-se na medida em que incessantemente reenvia
para um infinito jogo de intercâmbios, para a infinita reversibilidade
suscitada pelas imagens. E será talvez o espelho, em sua poderosa
recorrência, o signo que, tanto na poesia como nos ensaios, melhor
traduzirá essa complexidade. Entre os muitos exemplos, cito o
texto sobre Artaud. Logo no início, os termos com que se refere
ao acto criador, a propósito do escritor francês, podem
ser lidos como uma espécie de máxima de vida para a própria
escrita: “todo o acto poético remete para a sua própria
concretização, num processo de auto-referência em
que a linguagem vertiginosamente nos atira para o infinito através
dum interminável jogo de espelhos”. É impressionante
a comparência dos espelhos, das lentes, dos vidros na poesia do
autor de O Céu sob as entranhas, sobretudo enquanto
agentes deformadores, agentes da dispersão, e mesmo explosão,
dos órgãos.
Deparamos nos ensaios com passagens reflexivas apoiadas numa imagística
tão pessoal que, isoladas essas passagens, poderíamos
dizer que foram retiradas de poemas em prosa do autor. Veja-se este
fragmento: “Aquilo a que chamamos mundo mais não é,
em suma, do que o desenho que se esboça sobre o vidro do que
somos, desenho esse de que não podemos dissociar coisas como
a consistência ou a textura material da superfície onde
se imprime; e não se pense que esse vidro é um obstáculo:
a ele e à sua força intrínseca se deve a ordenação
do que sobre ele se delineia; se acaso ele se quebrasse, dissolver-nos-íamos,
incapazes os nossos olhos de entender o que por trás dele tivesse
estado” (“Os poemas em branco de Fiama Hasse Pais Brandão”).
Nunca será demais repetir o tão estreito diálogo
entre a obra poética e a ensaística, de tal forma que
em Luís Miguel Nava se pode falar de uma escrita que se diferencia
pela singularidade dum tecido impuro por vezes de difícil classificação
genológica. Essas indistinções conduzem àquela
que é uma das tónicas do seu ensaísmo, manifestada
justamente na ênfase posta na leitura das correspondências,
das inter-relações: o modo de ler acentuando, iluminando
coincidências, estabelecendo, a partir delas, nexos, pontos de
contacto. O autor assinala a todo o momento surpreendentes coincidências
de datas, de nascimentos, de mortes, de publicações de
livros… Sublinha associações inesperadas entre versos,
imagens, sons… Não se pense, contudo, que se forçam
as costuras. É espantosa a capacidade de estabelecer ligações
nestes textos fascinantes. Tudo se conecta numa intrincada teia de intercâmbios.
O discurso crítico vai mesmo socorrer-se de um quadro metafórico
para traduzir essa realidade. Os fios, as linhas, as redes servem de
apoio a estas penetrantes leituras da poesia. Veja-se um entre muitos
exemplos: “É tal a sua densidade, tal a quantidade de fios
que o percorrem e a energia acumulada onde eles se cruzam, que jamais
qualquer palavra crítica poderá aspirar a percorrê-lo
integralmente. Mais do que labiríntico, dir-se-ia que cada um
dos percursos que esses fios instauram se transforma de cada vez que,
a ele regressando por acessos diferentes, de novo nos dispomos a sulcá-lo,
como se à sua volta tivessem entretanto substituído o
cenário onde se embrenha” (sobre As Moradas 1&2).
O princípio das reversibilidades, que se apresenta como traço
distintivo da poética do autor, é o mesmo que vamos encontrar
como força propulsora da sua obra ensaística. Como se
tudo se sustentasse a partir dessas equivalências activadas pela
memória ou pelo acaso. Daí que encontremos frequentes
expressões como as que nos falam do “entrelaçar
de fios e de imagens”, de “linhas que se cruzam e contaminam”,
do “jogo de reciprocidades” ou dos “espelhos, ecos
e reenvios”.
O último texto da segunda parte, intitulado “Algumas coincidências”,
constitui uma peça fundamental da arquitectura em que se apoia
a ordenação destes ensaios. Pode dizer-se que o referido
texto configura a pedra de toque de toda a crítica naviana. A
luz que o poeta faz incidir sobre a sua própria obra (e a metáfora
da luz é aqui, de novo, fulcral) faculta-nos as chaves para compreendermos
de que modo se coloca diante da poesia dos outros. Diz-nos agora Luís
Miguel Nava: “espero que um pouco da luz que emana dos exemplos
citados se tenha transmitido aos meus vocábulos, fazendo-os brilhar
dum mesmo brilho. Como se — para de novo me servir da imagem da
electricidade, a que, de resto, Francis Ponge consagrou um texto tão
extenso quanto estimulantemente criativo — fosse possível
conectar estas palavras com as dos textos que as suscitam, e através
dessa operação, independentemente de qualquer confrontação
de géneros, participar ainda da aventura fabulosa que se chama
poesia”. Aliás, a palavra “coincidências”
é utilizada no artigo sobre Pessanha, ensaio fundamental para
o entendimento da poética própria. Pode dizer-se que o
ensaio é pretexto para reflectir sobre si. Sendo uma reflexão
sobre a literatura, não deixa de ser um espantoso projecto, uma
admirável poética. Leiam-se aí as passagens sobre
questões nucleares como a relação entre o interior
e o exterior do corpo.
Se nos ficarmos pelos lugares mais imediatamente detectáveis,
digamos que lugares comuns da poética naviana, podemos com grande
facilidade repescar neste volume exemplos que nos mostram como, no “jogo
de reciprocidades”, o duplo do mundo vai sempre ter ao poeta que
coabita com o crítico enunciador. Podemos avançar pelos
sinais mais óbvios, mais imediatos. Veja-se o final do primeiro
texto do livro (sobre Rimbaud), veja-se o diálogo que ele estabelece
com o último texto (sobre Bacon); o ensaio sobre o poeta francês
evoca no leitor da poesia de Luís Miguel uma lembrança,
justamente a que traz à baila o seu mais emblemático texto,
“Matadouro”. Mas a situação é extraordinária
pelo modo como o autor assinala a “ideia de violência”
que surge associada aos matadouros (lugares de sacrifício, que
acentuam a atmosfera rimbaldiana do “dérèglement
de tous les sens”), para submeter a sua leitura a essa mesma ideia
decisiva para a poética própria.
Todo o processo de identificações culmina no texto final
sobre Bacon, mas são intermináveis os exemplos, até
quando menos se espera. Atente-se o modo de focar o excesso, a desordem,
na magnífica leitura de Navegações, de
Sophia. No entanto, se tivesse que escolher um único exemplo,
falaria do texto sobre Luiza Neto Jorge. O sexo, o erotismo e a morte
(a violência erótica), o desejo de auto-imolação,
o destaque concedido aos objectos aguçados e cortantes, o carácter
religioso, sacrificial do erotismo, a presença dos espelhos,
das imagens, do ecrã, a associação entre o cinema
e o sexo na conjugação da experiência das vertigens
(“violência erótica produtora, também ela,
dum fluxo de imagens, por vezes desconexas”)… Dir-se-ia
que o poeta fala de si. Os processos de identificação
ocorrem mesmo ao nível dos micro-estilemas, como quando se assinala
o corpo com “raízes nos vulcões”, ou, em síntese,
quando se fala da visceralidade — tempo “visceral (vertiginoso),
como visceral é aliás tudo nesta obra” — e
da força vulcânica que anima a escrita de Luiza Neto Jorge.
Quaisquer que sejam as direcções seguidas, as portas franqueadas
sempre nos conduzirão à instância do sujeito criador.
A todo o momento emerge essa face. Daí resulta grande parte do
fascínio que emana destes textos. A intensidade da entrega pressupõe
a inclusão da figura do eu (o trabalho sobre si mesmo) no processo
de conhecimento da poesia dos outros. A permanente questionação
sobre o literário, que é questionação sobre
o poético, acompanha a fundura de um implacável processo
de autognose. Esse olhar faz-nos ver como a escrita de Luís Miguel
Nava se constrói em torno de um princípio introversivo:
é da própria ideia de escrita como autognose que se parte
para um aprofundamento das vozes dos outros. Uma infinita reversão
num extenuante jogo de espelhos: as imagens do mesmo e do outro tendem
a um ofuscamento que desvanece a impositividade dos traços distintivos.
Em dado passo deste livro deparamos com uma expressão que o exprime
de forma justíssima: “a consciência de ser espelho”.
Se os ensaios reflectem permanentemente a busca que visa o acto criador,
não se fique, contudo, com a ideia de que o livro oferece apenas
uma visão iluminadora da poética de Luís Miguel.
A luz que irradia destes Ensaios Reunidos torna muito mais
nítido o nosso olhar sobre a poesia portuguesa moderna e contemporânea. |