<

Facetas de uma ética
revolucionária em Camões
Ensaio de Luis Maffei

 
 

 

 

Um grande professor de literatura portuguesa, cujo nome não declino por razões óbvias e porventura tolas – talvez ele gostasse de ser citado aqui, enxergando a porta aberta ao debate e a homenagem que acabo por calar –, disse certa vez que as estrofes do Canto X d’Os Lusíadas posteriores à 145 são uma verdadeira, palavras dele, “chatice”. Não penso assim, mas experimento partir do que disse o mestre como hipótese de entendimento do final do poema mais importante da nossa língua.

Para entendermos a estrofe 145, precisamos voltar à circunstância imediatamente anterior. Após a cena vivida por ninfas e navegadores na Ilha do Amor (quem me convenceu de que o singular é mais adequado foi Fiama Hasse Pais Brandão[1]), uma ninfa descreve os feitos dos portugueses no futuro da viagem, mas no passado da escrita do poema. Depois disso, a Máquina do Mundo é apresentada por Tethys a Vasco da Gama, até a estrofe 142:

Até qui, Portugueses, concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar, que já deixais sabido,
Virão fazer
barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
Às eternas esposas e
fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas
, (Lus, X, 142)[2]

A 143, a partir do terceiro verso, e a 144 são ditas pelo narrador épico; a 145 as sucede:

Podeis vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo,
pera a pátria amada.”
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.

Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que
naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E a sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza.

(Lus, X, 143, 144, 145)

A partir de então, o citado professor enxerga uma espécie de anticlímax[3], pois o poético do poema se encerra na última estrofe transcrita. Lembrando melhor do que disse o mestre, seu paladar não desaprecia apenas as estâncias vindouras, mas também algumas das ditas por ninfa e Thetys. Portanto, antes e depois da axial estrofe 145 do Canto X, parto do pressuposto de que a experiência poética se enfraqueceu, para não dizer que têm lugar uma inequívoca “chatice”.

A pergunta que se impõe: por que o texto se menospoetiza? O poema chega a seu fim, e a vida do poeta, que assume o protagonismo discursivo a partir da estrofe 145, também: sua voz está “enrouquecida”, a viagem acabada e o retorno, garantido. É revelador: a ida da viagem ocupa centenas de estâncias; a volta, pouco mais de uma – a 143, pela profecia, e a 144; nesta última, em rigor, há apenas dois versos dando conta do regresso oceânico (“assi foram cortando o mar sereno,/ Com vento sempre manso e nunca irado”), pois a partir do versos seguintes, “Até que houveram vista do terreno/ Em que naceram, sempre desejado”, já estão os lusos na Lusitânia. A parte final da viagem não se compromete fartamente com a verossimilhança externa; a história nos diz, por exemplo, que Paulo da Gama morreu na travessia rumo ao “terreno/ Em que naceram”.

Mesmo se pensarmos apenas em verossimilhança interna, poderemos nos inquietar: como uma ida que teve de Adamastor a escorbuto, de fogo de Santelmo a traições, pode ter regresso “manso” em “mar tranquilo”? Nessa calmaria reside parte, se não da “chatice”, talvez da falta de interesse que o Canto X suscita nuns e noutros? É interessante: entre a voz de Thetys (comprometida com suas paixões, e, nesse momento, com o microcósmico Gama e a miniatura do imenso Universo[4]) e a fala do poeta, apenas catorze versos ditos pelo narrador. Conjectura: no poema, não há mais lugar para a narração de veleidades épicas, ou melhor, de ousadas peripécias. Por quê? Porque Baco não mais comparecerá para contradizer sentidos geográficos, mercantis etc., da viagem. Mas isso não necessariamente menospoetiza o poema.

Por que, então, o texto se menospoetiza (ressalto de novo que minha hipótese de trabalho não vem de mim, mas de mirada alheia) após a parca volta? É porque não há poema sem Baco? Não necessariamente, pois houve poema antes de Baco – ou melhor, houve-o antes da aparição de Baco na diegese, pois antes de Baco não há Luso, nem Lusitânia, não há, portanto, Lusíadas nenhuns. Conjectura mais funda: o texto é avaro no tratamento da volta porque, ao contrário da viagem histórica, não volta. Pela mesma razão, o texto tem seu clímax, a estrofe 156 do Canto X, antes do seu fim literal.

Isso tem diversas implicações. Uma delas: o problema d’Os Lusíadas é o futuro, não o passado – como afirma Helder Macedo, a “aventura iniciática de que o poema trata [...] não é [...] a passada, é a futura, aquela para a que o poeta vem chamar, no presente, os seus contemporâneos ao regressar de uma aventura equivalente à que representa na do Gama”[5]. Logo, a viagem não tem final, o regresso do poeta é apenas um levantar de cabeça para novo mergulho, e o porvir terá de ter “Altos barões que estão por vir ao mundo” (Lus, X, 7, 2) – não exatamente os herdeiros do poder no oriente, pois esses estão, isso é importante, no passado da locução de um poema já quase de fins do século XVI; prefiro ver esses “barões” como a gente que será gerada pelo encontro mítico entre ninfas e humanos na “Ilha namorada” (Lus, IX, 51, 6), ou seja, uma gente que ainda não existe, uma gente radicalmente do porvir.

Ou do devir? Seria excessivo supor que Os Lusíadas é um poema, não apenas (do) futuro, mas do devir? Não sigo ainda esse caminho, pois me forço a voltar ao que um grande professor considera chato no Canto X d’Os Lusíadas, o que vem após a estrofe 145. Que seja? Um discurso com alocutário expresso, o jovem rei de Portugal, D. Sebastião. Cito a estância 146:

E não sei por que influxo do Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de
contino
A ter
pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estás no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
(Lus, X, 146)

O sujeito do verbo “ter” é “Pátria”, o tema da estrofe é trabalho e trabalhadores, ou melhor, trabalho e o trabalho dos “vassalos excelentes” do rei de Portugal. Camões se põe em posição que lhe permite não apenas ombrear-se com o rei, mas dizer coisas muito sérias ao mandatário da pátria. Desde o Canto I, o poeta insiste em indicar uma postura regente que seja dotada de cariz humanista, e nisso está muito do que há de Renascimento nos versos camonianos. Não é despropositado, ainda que não seja assim tão óbvio, pensar num Camões democrata, mas passo agora por Jorge de Sena com o intuito de seguir investigando as razões da “chatice” no fim do poema. Diz o leitor que resgatou o vate de premissas tão neoplatônicas que para além do neoplatonismo, tão religiosas que para além do mais carola dos crentes – e Sena presta atenção, nesse fragmento, justo numa religiosidade muito própria em Camões:

Não se trata tanto de insistir em virtudes cavalheirescas num poema tão cheio de ressonâncias bélicas, escrito num tempo em que a guerra perdia as últimas características de um bailado cortesão. Trata-se, sobretudo, de sublinhar, quando a intolerância e a crueldade se instalavam oficialmente como formas sociais, como o Amor é conquista e rendição, mas é acima de tudo posse e dádiva, e prazer que nenhuma moral tem o direito de limitar: os actos de Amor são a divinização dos heróis, do mesmo modo que a morte de Cristo na cruz é a sua entrega, como Deus, ao pan-erotismo da humanidade que ele redime.[6]

O que diz Jorge de Sena, sugerindo um Camões revolucionário, lembra-me estrofe central do discurso dirigido ao rei, ainda no Canto I, cujo imperativo, modo que, por vezes, pode pedir, instrui:

Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
(Lus, I, 11)

Quem instrui? Alguém capaz de instruir enquanto representa outros; o representante representa quem não se pode, pelo discurso, representar, e o discurso, sabe-se, é o modo mais eficaz de (auto)representação, posto que há os que têm voz e os que não a tem. Camões a tinha, não pelo poder que seu nome lhe conferisse, tampouco pelos privilégios de que dispunha, mas pela palavra poética. Isso, de novo Sena, se deve a o poeta se ver “paradigma do humano”[7], capaz, portanto, de trazer para si uma humanidade inteira feita de “Amor”: “Vereis amor da pátria, não movido/ De prêmio vil, mas alto e quase eterno”, pois o rei deve amar quem o ama para ser capaz de amar o próprio amor, hipótese indispensável de humanização e, decerto, proceder ético. Isso porque “o Amor”, já nos disse Jorge de Sena, “é conquista e rendição, mas é acima de tudo posse e dádiva, e prazer que nenhuma moral tem o direito de limitar”, ou seja, é, em si mesmo, uma ética, se a pensarmos como aristotélica construção da eudaimonia.

Se falei em seniana sugestão de um Camões revolucionário, é já evidente que entendo esse Amor como gesto de revolução, capaz de obrigar o poeta a fazer um texto legível como “chato” por certos olhos. Chato, por quê? Porque o clímax antecipado do texto faz com que seu final não tenha Baco, Vênus, peripécia, Adamastor ou algo com tal atratividade imediata, mas história, pouco mais que história, e em construção. Não quero dizer que a história, para esse poeta e esse poema, deva deixar de abrir seus flancos àquilo que a extrapola – se assim fosse, o próprio poema, esse, não existiria. O que me chama a atenção é que, mesmo sob o risco da “chatice”, as onze estâncias finais d’Os Lusíadas falam bastante sério com um rei a educar, e falam sobre gente histórica e historicamente situada, já a partir da 146, recuperação da 11 do Canto I, até a 153, pois na 154 o poeta volta a falar de si.

Exemplo de versos que representam outros assinalados barões (digo outros porque o poeta é um deles): “Favorecei-os logo, e alegrai-os/ Com a presença e leda humanidade;/ De rigorosas leis desalivai-os,/ Que assi se abre o caminho à santidade.” (Lus, X, 148, 1-4). Diz Sena que “a intolerância e a crueldade se instalavam oficialmente como formas sociais”, e é em práticas imediatamente sociais que o poeta se mete, dentro de versos, claro, mas deixando a metáfora em nome de uma literalidade, não sei se maçante, certamente corajosa.

Exemplo de versos que propõem eudaimonia atenta à força de uma cristandade benfazeja, caso “os actos de Amor” sejam “a divinização dos heróis, e “a morte de Cristo na cruz” seja vista como “a sua entrega, como Deus, ao pan-erotismo da humanidade que ele redime”:

Todos favorecei em seus ofícios,
Segundo tem das vidas o talento:
Tenham religiosos exercícios
De rogarem, por vosso regimento,
Com jejuns, disciplina, pelos vícios
Comuns; toda ambição terão por vento,
Que o bom religioso verdadeiro
Glória vã não pretende, nem dinheiro.
(Lus, X, 150)

Não espanta “o bom religioso” não pretender “dinheiro”, coisa poderosa e perigosa, vítima de feroz crítica no final do Canto VIII. De acordo com a ética revolucionária desse Camões, o trabalho real não prescinde de uma dimensão religiosa, muito para além do direito divino: é também religioso, no sentido mais humano do termo, favorecer o “talento” relativo de cada indivíduo, ressaltando uma individualidade tão assinalada como o caráter coletivo dos barões.

Exemplo de versos chatos:

De Formião, filósofo excelente,
Vereis como
Annibal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.
(Lus, X, 153)

O tópico da estância 153 é a arte militar, entre a ciência e a prática, entre a erudição e a experiência – algo análogo o sujeito dirá de si mesmo, na estrofe seguinte: “Nem me falta na vida honesto estudo,/ Com longa experiência misturado” (Lus, X, 154, 5-6), já que o poeta, em grande medida, se inventa como metonímia de muito do que diz. A filosofia camoniana exige o acordo de “estudo” e “experiência”, sem contradição ou oposição. E o comprometimento futuro do poema se afirma nas duas estâncias finais:

Pera servir-vos, braço às armas feito;
Pera cantar-vos, mente às musas dada;
Só me falece ser de vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina,
Olhando a vossa inclinação divina,

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de
Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante.
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante
De sorte que
Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
(Lus, X, 155, 156)

Já na estrofe 15 do Canto I, o poeta diz ao rei que cantará os novos feitos se o jovem monarca os realizar, e, portanto, der ensejo a “nunca ouvido canto” (Lus, I, 15, 4). O gesto final do poema, para além de prescindir de qualquer clímax no justo encerramento da obra, sabe a Jorge de Sena como “sublime ironia: as epopeias não se prometem, fazem-se do que já é matéria delas”, pois “terminar uma epopeia com promessas de outra não é das menores demonstrações de quanto o poeta é central”[8], metonímico, vou além, representativo, representante, político, ético, revolucionário. O lírico, nessa épica, só é capaz de representar o povo porque a língua é capaz de, para além de representar o mundo, forjar novas dimensões de mundo, especialmente no caso da linguagem poética. Assim, o poema é ético já a partir de sua existência enquanto tal, especialmente porque, desde o fim do Canto VII, Camões está confessadamente cansado.

E a chatice? Tomei-a como hipótese de trabalho para chegar à seguinte conclusão: se o encerramento do poema, como já me disse aquele notável professor de literatura portuguesa, é chato, é-o em virtude de um compromisso, não com as musas (as musas lá estão, e sempre estarão, a serviço do poético e pelo poético servidas), nem com o mito (o mito lá está, e sempre estará, contribuindo para a construção de um discurso rebelde), mas com a mudança concreta de uma realidade, com o redimensionamento, por exemplo, das “formas sociais”. A sugestão de se invadir militarmente o norte da África tem diversas motivações, e uma delas é imediatamente econômica. Segundo António Sérgio, em começo do século XVI o “rei encarava o comércio indiano com um espírito de ganância apressurada e de balofa ostentação; seria absurdo que os vassalos, na Índia, empregassem nele uma atenção mais organizadora e mais metódica”[9].

O rei em questão é D. Manuel I, cujo sucessor, D. João III, “tentou acudir ao descalabro do regime colonial-marítimo: por um lado, buscando suster a decomposição da Índia; e procurando, por outro lado, acudir ao Brasil, ameaçado por piratas estrangeiros”[10]. É no tempo de D. João III que Camões experimenta estar em viagem, testemunhando uma situação político-econômica periclitante. Já no reinado de D. Sebastião, Camões regressa a Portugal e finaliza seu poema. Nessa altura, o Marrocos já se encontrava quase completamente livre do domínio português, e esse cenário é o que o poeta sugere ao rei reverter.

D. Sebastião terá seguido a sugestão de Camões? Fato é que o rei invade o norte da África, sem, contudo, a arte guerreira que o poeta, tendo sido ouvido ou não, lhe sugerira. O jovem monarca, “chegando à África”, diz-nos António Sérgio, “cumulou erro sobre erro, com desespero dos capitães que pensaram em prender o tonto”; resultado: “Foi um desastre completo, que, sabido no reino, o aniquilou de espanto e dor”[11]. Não importa, contudo, a prudência militar da indicação do poeta, tampouco a lucidez de sua perspectiva econômica; o que importa é: num poema sobejamente carregado de mito e mitologia, de imbricação entre amor e história, religião e paganismo, Maneirismo e Renascimento, a finda é uma intervenção direta, política, militar.

Ou, como diz Helder Macedo, o que está em causa é a “moralidade pastoril” da “guerra justa”. A Ilha do Amor é já a “representação transposta de uma outra guerra justa, contra os desconcertos do mundo”[12]. Mais que tudo, o final do poema inspira-se, não na Eneida, mas na Écloga IV de Virgílio, na qual “as imagens pastoris tradicionais” são retiradas de seu “contexto retrospectivo” e adaptadas “ao diferente propósito da exortação profética, ao anunciar o nascimento de uma criança com quem a Idade de Ferro cessará e uma nova raça dourada brotará por todo o mundo”. “O Puer virgiliano”, segue Helder Macedo,

simboliza o espírito de uma Nova Era em que a sociedade teria sido aperfeiçoada a ponto de conseguir inverter a inexorável sequência anterior de declínio e corrupção. Mas antes da pacífica abundância do novo Reino de Saturno voltar à Terra, ainda novas viagens teriam de ser empreendidas, novas guerras combatidas, outras cidades fortificadas, outros povos subjugados. [...] Desse modo, tal como Camões iria fazer em Os Lusíadas, transforma os feitos bélicos que constituem a matéria da celebração épica no veículo que iria reconquistar para o mundo a perene paz pastoril. Essa seria para Virgílio a Pax Romana, e para Camões a Pax Lusitana.

Ainda que o alocutário do fim da obra seja o mesmo de seu início, na “aventura iniciática” que é o poema o final só faz sentido enquanto sugestão última, ultimate, após toda a viagem ter sido feita. A promessa de nova épica, fundamento do fim do poema, só tem o peso que tem porque porta consigo imensa bagagem, construída verso a verso n’Os Lusíadas. A outra voz que defende a invasão do norte da África é o Velho que encerra o Canto IV. Encontra-se o poeta já iniciado pelo em conclusão com o Velho de experiente saber, dono de uma sabedoria que Camões encontrou noutro poeta, de acordo com José Vitorino de Pina Martins: “No episódio do Canto IV, dir-se-ia que Sá de Miranda desce de entre Douro e Minho a Belém, para incarnar no paradigmático anti-herói que é o Velho do Restelo”[13]. Os três, Sá de Miranda (não obstante sua família de militares), Camões e o Velho encaminham-se, ainda que diante da necessidade que o poema expõe de mais uma “guerra justa”, para a construção de nova Idade de Ouro, e isso D. Sebastião, ao invadir atrapalhadamente o Marrocos, não soube sequer intuir, mostrando estar muito distante de um Puer virgiliano ou lusitano.

Na conversa, de locutor único, com o rei, o vate mais uma vez recupera cantos antigos, como que a relativizar o fecho da terceira estância do Canto I: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta” (Lus, 1, 3, 7-8). “De sorte que Alexandro em vós se veja,/ Sem à dita de Aquiles ter inveja” não cala a Musa antiga, mas insiste na criação de musa futura, de “valor” ainda mais alto pois irrealizado, porém realizável. Faz sentido dizer que foi preciso o poema inteiro para o poeta perceber que a Musa nova, por ser nova, não precisa do silêncio da antiga, já que ocupa, na cultura, outro lugar?

Se foram precisos milhares de versos viajantes para o poeta poder aconselhar uma concreta ação ao rei, e se o fito d’Os Lusíadas está no futuro, volto a pensar em devir; de acordo com Silvina Lopes, a “figura de Dionisos – criança, loucura, êxtase – [...] retira à verdade do devir qualquer centro fixo, qualquer natureza teológica”[14]. Repito a pergunta que já formulei: seria Os Lusíadas um poema do devir, para além de poema do futuro? Visito outra vez Jorge de Sena, agora no prefácio à Poesia I; antes, revelo que num texto precisamente sobre Jorge de Sena formulei pela primeira vez a hipótese de o mais longo poema de Camões ser revolucionário, novo indício, entre tantos, do quanto Camões e Sena são próximos. Enfim, afirma o grande estudioso e poeta:

[...] à poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá-lo. Se a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo mesmo e com os seus leitores, uma educação, é também, nas relações do poeta com o que transforma em poesia, e com o acto de transformar e com a própria transformação efetuada – o poema –, uma actividade revolucionária[15].

O compromisso que Camões possui com a transformação é direto: que o rei de Portugal efetue operação militar de ressonância econômica, cujos fins, no limite, dirá Helder Macedo, são pacifistas. Essa instrução seria impossível caso o próprio poeta que a realiza não tivesse sofrido profunda transformação – eu escrevi que o final do poema não tem Baco, Vênus ou Adamastor, mas isso é correto apenas parcialmente, pois só porque lá estão Baco, Vênus e Adamastor o poeta fala o que fala a seu rei, e aponta mais uma vez para um futuro em que vejo um apontamento do devir, pois é prometido outro canto, que, por sua vez, poderá gerar outros, e outros cantores etc. Havendo uma Idade de Ouro ao fim de um canto situado em Idade de Ferro, o devir torna-se ainda mais detectável; de acordo com Nietzsche, a helênica “divinização da individuação [...] só conhece uma lei, o indivíduo, quer dizer, a conservação dos limites da personalidade, a ‘medida’, no sentido helênico da palavra”[16], o que, ao fim e ao cabo, pode levar à luta pela manutenção de diversos tipos de identidade, inclusive a nacional.

Silvina Lopes, no fragmento que citei, refere-se a Baco como quem retira a “natureza teológica” ao devir, e é evidente que um poema como Os Lusíadas, no qual Baco é personagem tão central que antepassado dos barões e patrono de seu prêmio, um bacanal, é dionisíaco. As palavras-chave usadas por Silvina Lopes são “criança, loucura” e “êxtase”, todas legíveis no poema – não seria infante um país utopicamente a inventar? Não possuem a benção da “loucura” personagens ditos como quase insanos, como Baco, Adamastor e o próprio poeta em arriscada, mas necessária, viagem, autoadjetivado como “insano e temerário” (Lus, VII, 78, 2)? Não é extática a cena da Ilha do Amor, e diversas outras? Nietzsche é quem diz que o poeta lírico

está antes de mais, como artista dionisíaco, totalmente identificado com o Uno primordial, com o seu sofrimento e a sua contradição [...]. O artista já abdicou da sua subjetividade por influência dionisíaca: a imagem que agora lhe apresenta a identificação da sua individualidade com a do coração do mundo é uma cena do sonho que lhe torna sensíveis a contradição original, a dor original.[17]

Cogito uma prática de devir que se abre à experiência e permite que essa mesma experiência configure novas visões do mundo, e fusões com o mundo. Isso, além de se assemelhar a certas práticas políticas, por si só representa uma política. Na poesia camoniana, para além d’Os Lusíadas, há diversos exemplos de revisão pela experiência, e mistura da “individualidade” com o “coração do mundo”; certa vez, tal coração se mostrou na forma de uma “cativa” a protagonizar famosas endechas, de que cito um fragmento:

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas
bárbora não.[18]

No tempo de Camões, uma “cativa” era alguém sem voz, direito ou, no limite, alma. Mas o poeta enamorou-se de uma “cativa” tão rigorosamente dotada de alma, “siso” e voz que nada tem de “bárbora”, ou seja, fala e é ouvida, ao menos pelo poeta – justo o poeta, cuja relação com linguagem e língua é tão especial. O branco ocidental torna-se, em dinâmica amorosa, portanto superiormente humana, cativo da “estranha” estrangeira que o domina e apraz, e o faz perder-se enquanto subjetividade redutora fazendo-o ganhar-se enquanto potência dionisíaca. No devir de um passado cuja verdade nada tinha de justa, opera-se revolucionária justiça, elevando-se a “cativa” ao posto de senhora. Trabalho ético, de ambição revolucionária[19].

E comprometida com o devir, pois comprometida com o ilimitado porvir do canto. Percebo, enquanto encerro este texto, que todos os séculos de leitura justa ou imprecisa, fiel ou desordenada, oportunista ou generosa, inovadora ou tímida, do poema interminável que é Os Lusíadas e da obra sempre por ler que é a camoniana, geraram uma enorme responsabilidade em nós, leitores de Camões; essa responsabilidade é muito semelhante à que moveu a pena do poeta, inclusive no final “chato” de seu longo texto, e tento traduzi-la: perceber que a poesia, ainda que se situe num espaço quase mágico na e da linguagem, ainda que funde realidades com imensa liberdade, situa-se naquilo que podemos chamar de mundo, e, aí, justamente aí, tem a tarefa de modificar alguma coisa. Por isso, para além de liberdade, a palavra-chave para uma poesia revolucionária, e para seu leitor, é libertação, mesmo que seja de um único par de olhos.

 


NOTAS

1. Cf. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. A ilha do amor. In. O labirinto camoniano e outros labirintos. 2. ed. Lisboa: Teorema, 2007.

2. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, 1978. As citações ao poema sempre serão feitas a partir desta edição.

3. Helder Macedo já considera um “portentoso anticlímax” as estrofes 8 e 9 do Canto X, quando o poeta se mostra em grande dificuldade anímica de seguir o canto. Cf. MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes, 1980. p. 51.

4. Um dos episódios mais instigantes do poema é, no Canto VI, a catábase báquica: o deus, opositor mais flagrante do projeto expansionista português, convence Neptuno a operar a destruição da esquadra do Gama. Thetys, a quem depois caberá o grande e controverso capitão na Ilha do Amor, não se opõe à decisão de seu marido, calando o que pretendia dizer Proteo na estância 36, que cito integralmente: Bem quisera primeiro ali Proteo/ Dizer, neste negócio, o que sentia;/ E, segundo o que a todos pareceu,/ Era algua profunda profecia./ Porém tanto o tumulto se moveu,/ Súbito, na divina companhia,/ Que Thetys indinada lhe bradou:/ “Neptuno sabe bem o que mandou!” (Lus, VI, 36). Disse eu há pouco das paixões de Thetys, e não sei se a palavra é a mais adequada. De todo modo, em nome da destruição da esquadra lusa, a ninfa alia-se a seu mitológico esposo, que, aliciado por Baco, pretende destruir Vasco da Gama, ninguém menos que o futuro humano esposo de Thetys. Além disso, não se sabe, nem se saberá nunca, o que Proteu calou. Esse silêncio é, talvez, uma das mais magistrais criações de suspense em todo um poema useiro e vezeiro na criação do suspense.

5. Op. Cit. p. 38.

6. SENA, Jorge de. Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura linguística de Os Lusíadas. In. Trinta anos de Camões – 1949-1978 (Estudos camonianos e correlatos). Lisboa: Edições 70, 1980. pp. 274-286.

7. Idem.

8. Op. cit.

9. SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. 7. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1977. p. 97.

10. Idem, p. 101.

11. Idem, p. 104.

12. MACEDO, Helder. Luís de Camões então e agora. Outra Travessia – Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, 2º semestre de 2010. pp. 15-54. As citações seguintes têm a mesma fonte.

13. MARTINS, José Vitorino de Pina. Sá de Miranda e o Velho do Restelo. In. VVAA. Estudos em memória do professor Doutor Mário de Albuquerque. Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009. pp. 538-552.

14. LOPES, Silvina. A inocência do devir – ensaio a partir da obra de Herberto Helder. Lisboa: Vendaval, 2003. p. 15.

15. SENA, Jorge de. Prefácio. In. Poesia – I. Lisboa: Morais, 1961. pp. 9-15.

16. NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes, s/d. p. 34.

17. Idem, p. 38.

18. CAMÕES, Luís de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro José da Costa Pimpão. Coimbra: Almedina, 2005. p. 89,90.

19. Pode ter alto interesse uma reflexão que associe o uso, n’Os Lusíadas, dos nomes de deuses que batizam astros à ideia astronômica de revolução, ou seja, volta periódica de um corpo astral ao ponto de onde partiu, ou movimento de um astro em torno de outro. As ideias da astronomia, além de dizerem respeito a mudança, ainda que dentro da circularidade, falam de relação e tempo, tópicos que sempre ocuparam Camões, em lírica, épica e drama.

topo
<