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Poesia e viagem
António Fournier

 
 

AL BERTO E A NOCTURNA
MEMÓRIA DO MUNDO

 

 

Si on ne laisse pas au voyage le droit de nous
détruire un peu, autant rester chez soi.

Nicolas Bouvier


O anjo mudo de Al Berto é porventura o texto poético que na literatura portuguesa melhor conjuga a relação recíproca e motivada entre poesia como destino e viagem como autodeterminação. O aforismo que aparece em “Aprendiz de viajante” – “Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica” –, surge constantemente diante dos nossos olhos de leitores à medida que acompanhamos Al Berto na viagem que fez à Sardenha em 1970. A pureza da estrada, que liberta a consciência de todo e qualquer freio, que lhe sussurra versos inesperados, que a impele a perseverar na promessa de um vasto território ainda por conquistar (o universo é igual ao vasto apetite de uma criança amante de mapas e estampas, lembra-nos Baudelaire): tudo isto está presente neste livro de viagens reais e imaginárias.

Como astronauta alucinado que é, o viajante submete-se a todo o tipo de prova – in primis, a de ser sempre e em qualquer caso um estranho – sobretudo a si mesmo – julgado, aceite ou renegado pela estrada e só por ela. E se é verdade que ninguém se leva a sério aos dezassete anos (precisamente a idade de Al Berto quando abandona Portugal para um exílio voluntário que se prolongará até 1975), o mote rimbaudiano “Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien” ecoa continuamente no itinerário sardo – Quartú Sant’Elena, Muravera/Villaputzu, Tortoli/Orgosolo, Baunei/Dórgalo/Nuoro – deste poeta andante que escolheu abandonar-se, muito jovem, à beleza e à adversidade do mundo para depois contar, como sobrevivente, o medo silente de ainda estar vivo. Esta é, de resto, a lição não só de O anjo mudo mas provavelmente de todos os seus livros.

Em que consiste exactamente, para Al Berto, a viagem como terapia contra a melancolia? Há uma insuperável aura poética que a poeira da estrada dá a quem ainda não tem vinte anos: os ténis gastos, os pés cansados e a vontade sôfrega e irrefreável de escrever. Páginas e páginas de um diário escrito nos momentos de pausa, à sombra de uma árvore, à beira da estrada, num casebre abandonado, numa praia ao luar, na tentativa de preencher o mal de vivre, essa “insuficiência central da alma” como a definiu Nicolas Bouvier, que é preciso aprender a combater e que, paradoxalmente, talvez seja o nosso melhor motor cardíaco. Lembra Al Berto: “Os anos passaram – como se apagam as estrelas cadentes – e, ainda hoje não sei se viajar cura a melancolia. […] A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite... Avancei sempre, sem destino certo”.[1]

Quando O anjo mudo é publicado em 1993, Al Berto tem 45 anos. Para trás ficou o período de errância da juventude. Voltou a Portugal em 1975 e estabeleceu-se entre Lisboa e Sines, cidade costeira da sua infância. Com o tempo, a sua escrita adquiriu as características de uma “morada de silêncio” (“uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém – é a isso que é preciso chegar”), tornando-se mais reflexiva, consciente da erosão afectiva e do preço a pagar por cada escolha. Como nos recorda Eugen Fink, “somos o resultado dos nossos actos anteriores; fizemos escolhas e renunciámos por conseguinte a muitas possibilidades. Cada acção que realizamos seriamente torna-nos mais determinados e simultaneamente menos abertos ao possível”.[2]

De certo modo, a poesia de Al Berto torna-se ainda mais eivada dessa mesma melancolia que tentou combater. Mas o poeta não deixa de interrogar-se sobre o porquê daquela inquietude íntima que o impelia em direcção a caminhos impérvios e infernos artificiais, que o levava a contar toda e qualquer transgressão, doce ou ácida que fosse. E que outra lenda contar se não a própria, de poeta errante?[3] Afirma Al Berto em “O que resta de uma viagem”: “As viagens estão intimamente ligadas aos meus livros. A todos eles, mas em especial aos primeiros. Àqueles que o tempo destruiu, tornou impublicáveis – ou eu rasguei, queimei, perdi. Desse tempo de aprendizagem da vida e da escrita, desses dias sem eira nem beira, sobreviveram uns escassos cadernos de notas. Eles são o que sobejou de um gigantesco diário de viagens. Nesses cadernos fui anotando, com minúcia, o dia a dia de cada viagem. Neles escrevi os primeiros poemas, desenhei mapas, paisagens e rostos. Fiz listas de lugares a visitar ou a evitar. Colei retratos de gente que se ia cruzando comigo, bilhetes postais, etiquetas, bilhetes de comboio e de avião, etc. Tudo cabia dentro daqueles cadernos. Por isso, nesta viagem à Sardenha, recorri ao que resta deles. E o leitor há-de perdoar-me se, com o escoar do tempo, esta viagem se tornou uma mera ficção.”[4]

Sem querer entrar aqui na questão do autobiografismo de um poeta em que “ao contrário de tantos outros, a relação entre experiência vivida e a escrita ganha proporções pouco frequentes”[5], é evidente que o desdobramento entre autor empírico e o seu duplo da escrita em O anjo mudo significa fundamentalmente um princípio ecológico de distanciação: já não viagens vertiginosas impelidas pelo desejo de “encontrar debaixo dos pés o granito aguçado do globo” como diria Chatwin, mas a memória depurada dessas viagens, o ponto de equilíbrio entre qualidade da literatura e quantidade de vida. E se a viagem cura a melancolia, poder-se-á também dizer que a poesia depura a memória. “Este é um livro de recordações que se fixa como exorcismo dessas mesmas recordações”, afirma Joaquim Manuel Magalhães a propósito de outro livro de Al Berto que bem se poderia aplicar a O anjo mudo[6].

Este livro é sobretudo, na sua forma orgânica final, um tributo àquele jovem que atravessava avidamente a Sardenha, as ilhas gregas e as Baleares à procura de “alimento para a sua própria morte”[7], e um último retorno àquele instante inicial, quando a bordo de um ferry, em pleno mar Tirreno, escreve convulsamente debaixo das estrelas, impelido por um sentimento de abandono cósmico: “Escrevi noite dentro, até que o sono me derrubou. Queria ser escritor, e não sabia o que era preciso para o ser. Tinha vinte anos e sentia-me abandonado. No fundo, nessa longínqua noite de setenta, a bordo do pequeno navio da carreira Civitavecchia-Cagliari, descobri que o abandono que sentia era o início misterioso de uma paixão que jamais me largou: escrever. E hoje, por vezes, ainda penso: talvez não tivesse sido mau ter permanecido na ignorância dessa paixão.”[8]

Regressemos pois aos inícios: a paixão pela escrita, descoberta no fim da adolescência acabará por transformar-se num enorme zibaldone portátil que o poeta-a-ser levará consigo como único e precioso despojo do vivido. Como contou na última entrevista: “O meu primeiro livro era uma espécie de livro de viagens, desenhado, e que eu queria que fosse facsimilado. Tinha para aí 500 páginas, com desenhos, mapas de cidades, fotografias, acontecimentos, chamadas a leituras... Lembro-me do bilhete das cadeiras das Ramblas onde as pessoas se sentavam a descansar, e o bilhete dizia: «Pode levantar-se duas vezes sem perder o lugar para ir ao urinol». Eu sabia que o Hemingway tinha falado nisso, e o Genet também. O livro era uma revisitação de lugares de autores de que eu gostava de modo diferente.”[9]

Manuel de Freitas refere-se a esse propósito a uma “toxicodependência verbal” ou “overdose de palavras”, retomando uma reflexão de Al Berto sobre a compulsividade da sua escrita diarística (“às vezes, o dia inteiro se resume a uma palavra; mas hoje, se não conseguir escrever, saio para a rua e mato alguém”).[10] Em “Primeiro equinócio”, Al Berto afirma: “ainda tenho resmas de papel para escrever. a viagem está segundo a segundo a ser registada. quando faltar o papel escreverei sobre a pele do viajante”. Escrita do corpo, portanto, tatuada na pele, no lugar das cicatrizes. “Se não concedermos à viagem o direito de nos destruir um pouco, o melhor é ficar em casa” dizia Bouvier, em L’usage du monde. Viajamos, acrescenta em Le poisson-scorpion, não para nos enfeitarmos de exotismo e de histórias como uma árvore de natal, mas para que a estrada nos esprema, nos torça e nos seque, nos transforme naquelas tolhas gastas que nos dão nos bordéis com um pedaço de sabão.

Quando em 1967, o jovem Alberto Raposo Pidwell Tavares parte para a Bélgica, com intenção de frequentar a École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels, ainda não sabe que nunca irá acabar o curso, mas certamente intui que este exílio será um território de crescimento emotivo. O poeta percorre a Europa na peugada dos seus heróis que persegue obsessivamente, Genet em primeiro lugar, desde que descobre, aos dezoito anos, o Diário de um ladrão[11]. A descoberta da escrita levá-lo-á, abandonada qualquer veleidade de carreira artística, também à mudança do nome: já não Alberto Raposo Pidwell Tavares, mas simplesmente Al Berto. Al Berto vestirá doravante a pele que será a sua – a pele do poeta: “Senti necessidade de abrir a brecha com uma coisa que era muito minha e abri o nome a meio, uma cisão num determinado percurso. Foi a maneira de não esquecer esse abismo. Depois, Al Bertô, dito à francesa, é mesmo árabe e é anónimo. E há qualquer coisa no anonimato que me seduz. E o nome funciona bem em termos de se reter.”[12]

Há claramente nesta cisão do nome algo mais do que uma simples linha divisória entre uma possível carreira de pintor e o ofício da escrita. É também o assumir-se como outro, autodeterminar-se, assinalar o ponto de não-retorno (“va t’en perdre où tu voudras”, diria Bouvier). É conhecida a paixão de Al Berto por espelhos. Como Herberto Helder ao recordar o seu quarto de infância em Servidões, o espelho é a superfície legível que fixou para sempre uma metamorfose: “conheço-te, sou a tua imagem perdida uma noite dentro do espelho”.[13] Ainda segundo Manuel de Freitas, “inúmeras passagens de O medo sugerem uma íntima relação entre pendor autobiográfico e imobilidade. A redacção do «diário» revela-se indissolúvel (tanto no plano «técnico» como físico e emocional) de uma voluntária ou involuntária imobilização.”[14] Como diria Valéry: “Je suis étant, et me voyant, me voyant me voir”, como se fosse de dentro do espelho que o “eu” actual observa o “eu” de então. Lembra Al Berto em O anjo mudo: “Tinham-me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás a imobilidade que desejas[15]).

Golgona Anghel, autora de uma biografia do poeta, recorre por sua vez à noção de “devir-animal” e introduz a questão da identidade teorizada por Deleuze e Guattari, ao falar de “uma transformação criativa da experiência” – precisamente aquela que o leva a transformar-se em «anjo mudo». A biógrafa afirma que “é esta a responsabilidade do artista e do escritor: escrever como um anjo: «O dia afoga-se, lentamente, na treva do mar. Deitas-te então ao lado do morto que ainda não és. E dele se liberta um anjo mudo que vem habitar o teu corpo.» Escrever incrustando aquilo que há de animal na imagem, com o propósito de libertar a imagem, de empurrar a escrita na direcção de um devir sem significado: «Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado, tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração».”[16]

Curiosamente, Al Berto escreve inicialmente em francês, como se fosse a sua experiência do exílio, caracterizada por um sentimento quase edípico de abandono, a dar-lhe a primeira cidadania na linguagem poética e a definir a sua forma mentis, o seu duplo literário.[17] São simultaneamente experiências de um “aprendiz de viajante” e provas gerais de escrita narcísica e autobiográfica. Livros escritos em longas horas alucinadas, durante a vigília, que depois destrói como L’engoulement ou extravia como Kalou on ice, perdido numa noite em Barcelona, reescrito e sucessivamente destruído pelo autor, ou como Noctiluque perdido durante uma viagem a Delos, ou outros que conserva mas reescreve totalmente como Pages de l’astronaute halluciné, ou deixa inéditos, como Esquisse pour un portrait d’Alain Petit-Pieds et Henriette Rock.

À procura do vento num jardim d’Agosto é o primeiro livro escrito inteiramente em português. Publicado em 1977 mas ainda marcado pela vertigem dos anos de exílio, este livro de estreia estabelece, segundo Eduardo Pitta, o momento em que “a condição homossexual se autodeterminou literariamente em Portugal”.[18] Nomeadamente, “o que Al Berto traz de novo à literatura portuguesa, é o lampejo de uma identidade queer capaz de nos dar, no fio da navalha, o quotidiano daqueles que foram excluídos dos sucessivos patamares das categorias sociais. Tudo, nos textos que escreveu, remete para uma homotextualidade coerente com os acidentes biográficos.”[19]

Já em 1980 Joaquim Manuel Magalhães afirmara: “Al Berto leva ao ponto mais alto quanto a mim, toda a tradição, (que começa a tornar-se portuguesa, Maria Lisboa e Cesariny como avatares, os Rock e os Beat como impulso) da poesia como ataque por todas as vias – droga, sexo, loucura, jogo, magia – a uma institucionalização de uma poesia literária, atenta aos códigos verbais, temorosa do lirismo confessional. Um fluxo de revelação de Al Berto, pela porta entreposta das «viagens», dos «travestis», dos «putos», das «bichas», e da exaltação do amor e do desejo, desencadeia um modo diverso de enfrentamento da ocupação maioritária dos impulsos, das práticas, da vida”.[20]

Muito mais do que a questão da homossexualidade por onde seria banal ler um poeta tão rico e complexo como Al Berto, importa notar que a sobreposição entre impoético e impúdico, subitamente anulada, vem iluminar uma zona de sombra e com isso enriquecer a poesia lírica portuguesa. Num Portugal ávido de novidades, receptivo a novas linguagens e estímulos vindos de uma Europa até então mais sonhada que conhecida, este húmus de que a escrita de Al Berto era portadora encontrou terreno fértil. Se para Adorno a linguagem está repleta de elementos mortos que nos couberam em sorte sem que tivéssemos oportunidade de configurá-los, a capacidade de Al Berto de nomear uma realidade ainda sem nome na poesia portuguesa – essa capacidade de configurá-la poeticamente – torna-o um escritor muito consciente, como refere Ramos Rosa, de que a vida “nasce da saturação extrema de um desamparo existencial e é ainda o impulso radical de um desejo absoluto que busca incessantemente a sua impossível identidade.”[21]

Ele próprio interpreta essa busca, transformando-se num dandy underground, um poeta-camaleão que cultiva a extravagância e a transgressão sexual, misturando a cultura pop com uma certa aura aristocrática por via do apelido de ascendência inglesa. Poderia muito bem vestir-se “com a sua habitual jardineira cheia de crachás como um general, Sex Pistols, Joy Division, Clash sempre Clash” como um dos personagens do escritor italiano Pier Vittorio Tondelli no romance Pao Pao[22]. Não é por acaso que O medo, a sua opera omnia publicada em 1987 e sucessivamente ampliada, acompanhará o crescimento de toda uma geração que se reconhece nas suas indagações existenciais nos territórios desolados do vazio e da solidão.[23]

Para além da poética da viagem comum a Al Berto e Bouvier, seria interessante aproximar o poeta português a Vittorio Tondelli. Há muitas analogias entre o papel e o percurso transversal dos dois escritores no interior dos respectivos ambientes culturais, português e italiano, aliás praticamente contemporâneos. Não só ao nível da projectualidade de “pequeno artesanato editorial” que acomuna os dois na tentativa de dar voz a outros poetas marginais ou marginalizados (o Progetto Under 25 de Tondelli, os vários livros alternativos editados por Al Berto, entre os quais a tradução do livro-culto de Tony Duvert, Retrato de homem faca). Não só pela obsessão da viagem como potencial de liberdade e transgressão, para longe de ambientes moralmente asfixiantes. Não só, finalmente, pelo fim precoce de ambos, que soa como uma maldição para os poetas malditos.

O que acomuna verdadeiramente Al Berto e Tondelli é o facto de terem vivido como protagonistas de uma mudança radical da koiné cultural do seu tempo, contribuindo decididamente para a tornar mais do que nunca permeável a outras linguagens, contaminando-a com uma espécie de frenética música de fundo, aqueles eigthies que os haveriam de queimar rapidamente na intensidade do fogo que eles mesmos atiçaram.[24] Se, nas palavras de Fink, “o «livre arbítrio» é uma ilusão; somos nas nossas acções tão determinados por leis quanto a pedra na sua queda – só não são ainda suficientemente conhecidas as leis do determinismo da vida espiritual do homem –”[25], poder-se-á dizer então que a autodeterminação através da viagem em Al Berto o tornou um símbolo de transgressão e de risco. Mas também, e quase paradoxalmente, um símbolo incontornável de uma devoção à escrita[26], entendida como testemunho espiritual.

Da mesma maneira que Bouvier, para escrever o Poisson-scorpion, precisava de dedicar horas a cortar lenha, tal a violência do esforço para depurar a sua escrita, também para Al Berto “escrever poemas é o modo de encontrar o silêncio e uma certa sabedoria, onde já não é preciso pôr as palavras no papel”. Quantas vezes por detrás de um seu poema está uma carta, um bilhete, um fragmento de diário transfigurado? Dir-se-ia que a poesia da maturidade em Al Berto está para a prosa do mundo como a ascese está para o caos da viagem.
“Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo.”[27] Este é um dos tantos excertos citáveis de um livro feito de partidas e de regressos, como terapia impossível, mas não por isso evitada, contra a melancolia difusa de uma época cínica e impiedosa como é a nossa. A poética da viagem como mote existencial que o mesmo declina, faz de O anjo mudo um dos textos símbolo da geração de órfãos que David Foster Wallace considerava ser a condição pós-moderna.

Al Berto ensina-nos que só a viagem é ainda capaz de nos fazer escutar aquele canto lírico, íntimo e delicado, que há dentro de cada um de nós, capaz de anular, contra todos os cepticismos, a oposição hodierna entre ingenuidade selvagem e melancolia rebelde. A sua poesia dá forma e sentido a experiências cruciais de uma existência, ilustrando toda a sua fragilidade, para contar a legenda de um corpo que foi consumido até às cinzas. “Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir, vou usá-lo, desgastá-lo até o limite suportável, para que a morte nada encontre em mim quando vier”, vaticinava o sujeito poético de À procura do vento num jardim d’Agosto. Poder-se-ia por isso concluir esta evocação de Al Berto com o mesmo epitáfio que Umberto Eco dedicou a Tondelli: “No fundo, até onde lhe foi possível, continuou assim: viver a arder e não sentir a dor.”[28]

Preferimos porém deixar a Agustina Bessa-Luís a tarefa de fixar o retrato do artista enquanto jovem: “Eu vi-o pela primeira vez, num sofá do hotel, em França, penso que foi. Tinha um ar infantil e doce de quem espera protecção. O cachecol branco acentuava a requintada pose sem ser pedante. Vinha de casas grandes, avós ríspidos e ricos, férias no parque, qualquer coisa assim. Era tão bonito e apaixonado que se via logo que nada daquilo ia ter qualquer arranjo com a realidade. Para mais, fazia poesia. O espelho que o acompanhava sempre era como o caixão que Sarah Bernhardt levava para toda a parte. Servia-lhe de moldura para a morte.”[29]

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AA.VV., Pier Vittorio Tondelli, Panta n.° 9, 1992
Al Berto, Horto de incêndio, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997
Al Berto, O anjo mudo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001
Al Berto, O medo, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997
Clara Ferreira Alves, “Al Berto – A um deus desconhecido” in Revista “Expresso”, 31 Maio 1997
Golgona Anghel, Eis-me acordado muito tempo depois de mim. Uma biografia de Al Berto, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006
Nicolas Bouvier, Le poisson-scorpion, Gallimard, Paris, 1982
Nicolas Bouvier, Il doppio sguardo. Le dehors et le dedans, trad. Luigi Marfè, ETS, Pisa, 2012
Roberto Carnero, Lo spazio emozionale. Guida alla lettura di Pier Vittorio Tondelli, Interlinea, Novara, 1998
Joaquim Cardoso Dias, Dez cartas para Al Berto / Dez cartas de Al Berto, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007
Manuel de Freitas, A noite dos espelhos. Modelos e desvios culturais na poesia de Al Berto, Frenesi, Lisboa, 1999
Manuel de Freitas, Me, Myself and I – Autobiografia e Imobilidade na Poesia de Al Berto, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005
Eugen Fink, Il gioco come simbolo del mondo, Lerici Editore, Roma, 1969
Joaquim Manuel Magalhães, Os dois crepúsculos. Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A regra do jogo, Lisboa, 1981
Ana Paula Coutinho Mendes, “Corps d’exil. Quelques configurations chez des auteurs portugais ou d’ascendance portugaise” in Actes du Coloque international Temporalités de l’exil, http://www.poexil.umontreal.ca/events/colloquetemp/actes/coutinho.pdf
Enrico Palandri, Pier Tondelli e la generazione, Laterza, Roma-Bari, 2005
Eduardo Pitta, Fractura. A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea, Angelus Novus, Coimbra, 2003
António Ramos Rosa, A Parede Azul. Estudos sobre poesia e artes plásticas, Caminho, Lisboa, 1991.
Pier Vittorio Tondelli, Altri libertini, Feltrinelli, Milano, 2009.

 

 

NOTAS

1. Al Berto, O anjo mudo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p. 9.

2. Eugen Fink, Il gioco come simbolo del mondo, Lerici Editore, Roma, 1969, p. 93 [tradução nossa a partir da edição italiana].

3. A propósito de autobiografismo, Antoine Compagnon referiu-se há alguns anos num congresso em Turim, cujas actas não foram ainda publicadas, (“Autobiografia / Life writing”, Centro Studi “Arti della Modernità”, Torino, 3 marzo 2011) à relação terapêutica entre identidade e narração. Para ele “la théorie du sujet aujourd’hui dominante dans toutes les disciplines, psychologie, sociologie, philosophie, lie fortement identité et narrativité. Elle affirme qu’on se crée une subjectivité, un Moi, en construisant une narration autobiographique, un récit de sa vie. Et que si, pour une raison ou une autre, ce récit de vie nous fait défaut, nous ne vivons pas bien, nous sommes malheureux, nous soffrons des troubles” (“Se raconter en photos”, artigo policopiado).

4. O anjo mudo, p. 12.

5. Fernando Pinto do Amaral, “Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia” in O mosaico fluido, Assírio & Alvim, Lisboa, 1991, p. 121.

6. Joaquim Manuel Magalhães, Os dois crepúsculos. Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, Lisboa, 1981, p. 271.

7. Al Berto, “recado” in Horto de incêndio, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 9.

8. O anjo mudo, p. 17.

9. Clara Ferreira Alves, “Al Berto – A um deus desconhecido”, in Revista “Expresso”, de 31 de Maio de 1997, p. 90.

10. Manuel de Freitas, Me, myself and I. Autobiografia e imobilidade na poesia de Al Berto, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p. 25.

11. “História de um desencontro intermitente. É breve mas poderia ser infinita. Começa no dia em que um amigo lhe fala de Diário de um ladrão. – Tinha acabado de fazer dezoito anos. Estava na Bélgica dos 67. Decide comprar o livro. Na primeira livraria a que se dirige não o encontra. Na segunda não têm livros desses. Na terceira, o livreiro traz-lhe a obra pedida. Quando está a pagá-la repara num velho que o olha e abandona a livraria rindo baixinho. Era Jean Genet, de quem, fascinado, acabaria por ler toda a obra de um fôlego” in Golgona Anghel, Eis-me acordado muito tempo depois de mim. Uma biografia de Al Berto, Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006, p. 57.

12. Golgona Anghel, op.cit., p. 49.

13. in O medo (p.361) apud Manuel de Freitas, op.cit., p. 31.

14. Manuel de Freitas, op.cit., pp. 23-24.

15. O anjo mudo, p. 74.

16. Golgona Anghel, op.cit., pp. 121-122.

17. Veja-se a este propósito o interessante artigo de Ana Paula Coutinho Mendes: “Al Berto est un de ces auteurs qui vécut hors du Portugal entre 1967 et 1975. Dès sa première publication, déjà parue au Portugal mais renvoyant à l’exil, À procura do vento num jardim de Agosto [...], il assume le «corps vagamondain» – unique bagage de l’errance, façonné, sans doute en raison d’une mode générationnelle, par des expériences hallucinogènes fondatrices. [...] Al Berto fut un des rares écrivains portugais à essayer d’écrire dans la langue du pays d’exil (la Belgique), encore qu’il ait, à vrai dire, inventé une «troisième langue», tantôt un français inintelligible ayant recours à la syntaxe portugaise, tantôt une langue autre, vertigineuse, incompréhensible, «quelque chose qui couperait d’une fois pour toutes le cordon ombilical»” Ana Paula Coutinho Mendes, “Corps d’exil. Quelques configurations chez des auteurs portugais ou d’ascendance portugaise” in Actes du coloque international Temporalités de l’exil, p. 10 http://www.poexil.umontreal.ca/events/colloquetemp/actes/ coutinho.pdf

18. Eduardo Pitta, Fractura. A condição homossexual na
literatura portuguesa contemporânea
, Angelus Novus, Coimbra, 2003, p. 18.

19. ibidem

20. Joaquim Manuel Magalhães, “Algumas Palavras” in “Os Dois Anos Setenta”, A Capital, Lisboa, 20 Agosto 1980, (apud Golgona Anghel, pp. 34-35) sucessivamente retomado (e ligeiramente retocado) in Os dois crepúsculos, op.cit., pp. 268-273.

21. António Ramos Rosa, “Al Berto ou a violência do desamparo” in A Parede Azul. Estudos sobre poesia e artes plásticas, Caminho, Lisboa, 1991, pp. 120-121.

22. AA.VV. Panta n.° 9, p. 7 [tradução nossa].

23. Um belo testemunho é o prefácio ao livro-tributo Dez cartas para Al Berto / Dez cartas de Al Berto no qual o organizador, Joaquim Cardoso Dias, o mesmo Joaquim, já personagem de O anjo mudo, diz a propósito de O medo: “Este livro acompanhou todos os meus passos durante a adolescência e juventude e povoou o meu mundo com um coração demasiado humano, igual à pele, repetido de página em página, mergulhando na fidelidade das investigações poéticas da solidão e da melancolia.” Joaquim Cardoso Dias, “A leitura branca” in Dez cartas para Al Berto / Dez cartas de Al Berto, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007, p. 10.

24. Os dois eixos de sentido que Enrico Palandri detecta em Altri libertini de Pier Vittorio Tondelli, poderiam aplicar-se em grande parte também a Al Berto: “o primeiro inspirado na reconstrução da geração, em que a escrita procura dar espessura existencial, através da hipérbole, do lirismo, do exagero paroxístico, a uma experiência órfã e marginal; [...] o segundo percurso, mais intenso, é por sua vez dominado pela espera, pela busca, pela humilhação do corpo. Um caminho que tenta o metafísico, a relação com o além (a nostalgia, a chegada de um correio da droga que é quase um anjo, o vazio e a solidão em que se fica a sós com o próprio corpo.” (Enrico Palandri, “Altra Italia” in Panta n.° 9, op.cit., p. 18 [tradução nossa].

25. Fink, op.cit., p. 78.

26. Panta n.° 9, op.cit., p. 7.

27. O anjo mudo, p. 10.

28. Umberto Eco, “Ventinove” in Pier Vittorio Tondelli. Panta n.° 9, p. 170 [tradução nossa].

29. Agustina Bessa-Luís, “Al Berto” in Eis-me acordado muito tempo depois de mim, op.cit., p.11.

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