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A prudência do sentimento requer
um uso da linguagem capaz de se
apropriar dos exercícios de perícia
que o tinham suspenso nas palavras
para pela dor procurar dar consistência
às fracturas que nele tinha provocado
a vista do precipício. O olhar perdera-se
no horizonte mas o corpo, anestesiado
pelo vento, deixara-o de sentir
à medida que no ar o esculpiam
a cinza e a urze. Já teria caído?
Parte de si deslocara-se da proteção
do corpo e fitava-o de baixo,
à espera que a gravidade o levasse
a conhecer, pela queda, as razões
do sucedido. Anos depois continuava
sem perceber a novidade do movimento
que o arrancou do muro e o trouxe
outra vez para as clareiras da superfície.
Nalgum ponto o medo
tocou a imensidão do corpo
para assim fazer coincidir,
pelo gesto, o mundo consigo.
Mas o real não, que nunca
recuperou da imagem que,
ao cair, embrulhou num corpo
a certeza mesmo de ter vivido.

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Fernando Guerreiro
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Relâmpago nº9
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